Ano Novo

Aquele ano estava em seus estertores finais quando entraste em meu atelier portando um cabide de onde pendia um saco plástico envolvendo o que parecia ser um traje. “Teu smoking”, disseste exultante. “Não tenho smoking”, retruquei mal-humorado. “Agora tens”, replicaste. “Pra que preciso eu de smoking?” quis saber. “Pra nossa festa de passagem de ano”, foi tua resposta. “Não pretendes comparecer usando esses jeans desbotados e esses tênis em frangalhos.” Voltando-me as costas, penduraste o cabide na arara onde tenho minhas poucas roupas. Da tua enorme bolsa, extraíste uns sapatos pretos com um par de meias da mesma cor ainda em sua embalagem. “Ali tens também uma camisa com peitilho plissado e uma gravata borboleta.” apontando para o cabide. “Comprei uma de clipe, porque sei que não terias paciência para aprender a dar o nó.” Meu atelier é uma mansarda num dos prédios vetustos do Centro Histórico. Um grande espaço iluminado por três claraboias, que definem as áreas em que vivo e trabalho. A mais distante da porta é onde durmo, onde fazemos amor. É separada do resto por um biombo japonês de três painéis que encontrei num brique. O espaço central é onde tenho meus cavaletes, minhas mesas de trabalho, meus garrafões de aguarrás e óleo de linhaça, meus pincéis, minhas tintas. A entrada é uma sala de mal-estar, como dizes, com um sofá puído e de cor indefinida, duas poltronas desparelhas, uma mesa de centro cujo tampo ostenta as manchas circulares dos muitos copos que ali descansaram ao longo desses anos em que existo e trabalho neste lugar. A luz é magnífica nos dias de Sol. Quando o tempo enfarrusca, alguns abajures espalhados pelos cantos iluminam minha vivenda. Abandonei a tela em que trabalhava e te segurei pela mão. “Que festa é essa, meu bem?” “Ora, querido, já te falei. Toda a minha família se reúne a cada passagem de ano. Desta vez, te quero lá para conheceres a turma.” Há algum tempo vinhas tentando me apresentar à tua família. Eu resistia. Sou possessivo e ciumento e te quero só para mim. Preferia manter longe de minha mente a ideia de ter que te dividir com tua parentela. Mas o implorar em tua expressão derrubou minhas últimas barreiras. Exalei o ar preso em meus pulmões e disse “Oquei, me visto de pinguim e tu me levas para eu receber o beneplácito do teu clã.” Juntaste as mãos junto à boca, teu sorriso resplandeceu, deste um pulo e já estavas pendurada em meu pescoço, olhando-me fundo nos olhos, a carinha repentinamente séria. “Jura? Não vais dar pra trás na última hora?” “Juro!” respondi, enlaçando-te pela cintura e beijando teu pescoço. No último dia do ano, vesti a fantasia que me impuseras. Sabes todos os meus tamanhos, tuas mãos já me mediram por inteiro. Não havias provido cueca, felizmente eu tinha uma recém lavada no fundo da gaveta. A camisa não me apertou no colarinho, o fabricante não tinha economizado popeline e o corpo da camisa era folgado e longo. As calças ficaram um pouco largas na cintura, peguei um cinto qualquer, pois a faixa de cintura o ocultaria. Tirei as meias da embalagem e as calcei. Longas até as canelas, como sabes que eu gosto. Os sapatos um pouco folgados, o que achei bom. Postei-me diante do enorme espelho que quase cobre a parede ao lado da cama para afixar a gravata borboleta. Dei um passo atrás ao não reconhecer o homem que tinha diante de mim. Minha autoimagem não muda há décadas. Vejo-me sempre trajando as mesmas camisetas, os mesmos jeans, as mesmas jaquetas, os mesmos tênis “em frangalhos”, como dizes tu. O que tinha diante de mim era um sujeito magro, branco e preto do pescoço para baixo, com uma expressão de desgostoso espanto no rosto angular. Dei de ombros, chamei um Uber, guardei nos bolsos carteira, cigarros e isqueiro (também preto) olhei em volta, saí e tranquei a porta. O motorista do Ford Ka que me apanhou em frente a meu prédio não resistiu e disse “Pelo jeito a festa vai ser fina.” Resmunguei qualquer coisa, ele me olhou pelo retrovisor e seguimos em silêncio o resto do trajeto. A rua em que mora teu pai tinha carros estacionados de ambos os lados. As luzes dos postes resvalavam pelas superfícies polidas luxuosamente. Feérica era a luz que se despejava pelas aberturas da grande casa branca. Vultos animados passavam pelas janelas abertas para a noite fresca. As portas duplas da entrada estavam abertas e por elas entrei. Ajeitei a gravata no espelho da chapeleira do foyer e passei para o salão. Parece que me esperavas, pois foste a primeira pessoa que vi. Teu rosto amado se abriu em completa alegria e agradável surpresa. “Estás lindo!” “Linda estás tu, mulher!” respondi. Teu vestido, que escondia teus pés, era de seda de um azul cobalto brilhante, totalmente coberto por uma renda de florões azul marinho. Um cinto prateado cingia tua cintura. Teus cabelos de cobre, bronze e ouro luziam de saúde e cuidados. Tua maquiagem, normalmente apenas sugerida, nesta noite se mostrava mais assertiva. Sombras azuis cobriam tuas pálpebras, cujos cílios longos tinham o negror do rímel. Teus lábios eram da cor de um bom bordeaux. Tinhas a língua rosada entre teus dentes brancos, uma das minhas expressões preferidas. Tomaste-me pela mão e me conduziste para o interior do salão. Os grandes lustres de cristal derramavam suas luzes multifacetadas sobre grupos de homens e mulheres em trajes de noite. Um discreto zunzum pairava no ar por sobre as cabeças bem penteadas. Todos seguravam alguma bebida. Flautas de champanhe, copos de uísque, balões de conhaque, taças de martini, todos bebiam. Ninguém fumava. Contra uma das paredes, um bar havia sido improvisado. Atrás dele, um homem de colete e camisa brancos, borboleta vermelha, sacudia uma coqueteleira. Um rapazote no mesmo uniforme trazia copos limpos e os distribuía junto às garrafas de bebida. Três magnuns (ou magni?) de Veuve Cliqot estavam mergulhados em uma tina de gelo. Me levaste até lá e pediste ao barman uma dose dupla de Glenffiddich sem gelo. O homem me olhou com ar de aprovação, despejou o líquido âmbar num pesado copo de cristal que estendeu para mim. Agradeci com um sorriso e bebi o primeiro gole. Ele me olhava curioso, ergui o copo em saudação, tomaste-me pelo braço e fomos em direção a um grupo de homens. Reconheci teu pai pelas fotos que tiravas no celular sempre que estavas com ele. Dois dos outros homens seriam teus tios, pela semelhança. Os outros dois eu nunca tinha visto antes. Me apresentaste declinando meu nome completo, sem tropeçar no alemão do sobrenome. Mãos se estenderam, fui apertando-as da direita para a esquerda, ouvindo e imediatamente esquecendo os nomes a que as mãos correspondiam. “É como já te conhecesse”, disse teu pai. “Esta menina não para de falar em ti.” Apertaste meu braço, eu sorri desajeitado. “Então o senhor é pintor”, inquiriu teu tio mais velho. “É o que faço”, respondi. “Pinto.” “Acho que já vi um quadro seu”, interpôs teu tio mais novo. “Uma fachada de casa antiga, se não me engano. Vi não faz muito tempo na casa de um amigo.” “Tem sido meu assunto há alguns meses. O centro é rico em fachadas intrigantes.” “Intrigantes?” quis saber teu pai. “O que queres dizer com isso?” “Superfícies em que o tempo deixou marcas, manchas de mãos nos portais, vidros sujos, vidas vividas ali, é isso. Intrigantes.” Teu pai assentiu com a cabeça, olhando-me com atenção. “O que vale um quadro teu?” perguntou um dos outros dois, um homem de meia idade, óculos de aro de ouro, olhos muito azuis. Disse o valor corrente então, a média do que tinha vendido na última mostra. “Esse é meu corretor”, disse teu pai. “Para ele, tudo se resume em dinheiro.” “E vende bem?” quis saber o segundo homem. Este era magro, cara chupada, cabelos pintados. Fiz com a mão um gesto de mais ou menos. “Dá pra manter a alma e o corpo juntos”. “Antes de fazer Direito”, meditou o magrelo, “pensei em fazer Belas Artes. O senhor fez faculdade?” “Comecei a trabalhar aos quatorze anos”, expliquei. “Comecei desenhando flâmulas para uma firma de silkscreen. Depois, passei a pintar decorações pra vitrines das lojas do bairro. Natal, Namorados, Mães, essas coisas. Ganhava meu dinheirinho, dava pra comprar uns livros de Arte, umas tintas. Fui aprendendo.” Durante esse interrogatório, tu te havias afastado. Agora voltavas, trazendo no braço uma pequena pilha dos catálogos da minha última exposição, que distribuíste entre os cinco homens. “Foi este aqui”, exclamou teu tio mais novo, apontando para uma reprodução numa das páginas em couchê. “Foi este que vi. Então foi nessa galeria que ele comprou teu quadro.”  Os demais folhavam os livretos, equilibrando copos, apontando este ou aquele quadro, trocando impressões em voz baixa. “Agora entendo o que queres dizer com intrigante”, falou teu pai. “Cada uma dessas fachadas parece contar uma história.” Teu pai e eu trocamos olhares e um sentimento de mútuo respeito se estabeleceu entre nós. Tomaste-me pelo braço. “Tens cigarros?” perguntaste baixinho. “Tenho”, respondi. “Vou roubar meu noivo um pouquinho”, disseste ao grupo e me levaste para o terraço. “Noivo?” te perguntei enquanto andávamos. “Sim, como queres que eu me refira a ti? Meu amante? Meu ‘caso’? Minha loucura?” “Noivo está bem”, respondi. “Desde que não esperes casamento.” “Eu? Casar contigo? Deus me livre!” A Lua estava especialmente bela para se despedir do ano que findava naquela noite. Seu brilho prateava os arbustos do jardim. Os canteiros de flores mesclavam seus perfumes com o que exalava de tua pele. Acendemos os cigarros apoiados no balaústre que separava (e ainda separa) o terraço do jardim. O esplendor da Lua prendia toda nossa atenção. “Mais um ano em que estamos juntos”, suspiraste. “Quantos ainda nos restarão?” Voltei meus olhos para teu rosto, que a Lua banhava invejando tua beleza. “Não penses nisso agora”, falei carinhosamente. “Hoje será sempre hoje. Amanhã vai ser hoje assim que os sinos derem as doze badaladas. O ano que vem será hoje também. E vamos continuar vivendo, de hoje em hoje, até que o Destino decida diferente.” “Mas eu não sei viver assim, meu amor”, lamentaste. “Tenho medo do futuro, hoje estou contigo, nada me assusta. Mas, e amanhã? Ouvi o que disseste, amanhã é hoje, mas para mim isso é difícil de incorporar, sempre vivi amarrada a calendários, relógios, alarmes, prognósticos, previsões, planos. Tu és diferente.” Não era a primeira vez que esse assunto vinha à baila. Desta vez não permiti que ele me exasperasse. Abracei-te com ternura, toquei teu rosto com os dedos, tracei com eles o contorno de teus lábios, beijamo-nos e, como sempre, fomos transportados a outra dimensão, em que só nós existíamos, nossos corpos, nossas peles. Um suspiro entrecortado fez com que descolasses tua boca da minha. “Ora, meu bem, não vais ficar triste hoje, não é? O que vão pensar teus parentes? Que eu não te faço feliz? É isso que tu queres que eles pensem?” Pousaste tua mão no meu rosto e teu sorriso voltou a iluminar minha noite. Do interior do salão, vozes em uníssono começaram a contagem regressiva. “Vamos”, disseste, e voltamos à festa. A contagem chegou ao fim entre gritos, foguetes, sinos, latidos de cães. Abraçamo-nos, fomos abraçados, a alegria explodia em risos e saudações. Mais um ano contigo, meu bem. E tantos mais quantos o Bom Pai Celestial nos permitir. 

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