A cultura do desperdício

A expressão cultura do desperdício sintetiza perfeitamente o que constitui uma das características mais importantes da modernidade ocidental. Pode-se afirmar, sem exagero, que o produto característico de nossa cultura é o desperdício. Seu componente mais visível é constituído pela acumulação de produtos em bom estado, mas que perderam sua capacidade de serem utilizados e que são substituídos por sucessivas ondas de novos produtos, melhores e mais baratos.

A necessidade de ter, de aparentar status, transforma o consumidor em inimigo de si próprio. Ele se torna vítima da ganância, que leva ao consumismo, e da falta de informação, que gera desperdício e prejuízo. A cultura do desperdício se incorporou de tal forma à vida brasileira que nada de concreto é feito para reverter os números absurdos do que se perde.

Todos os anos, cerca de R$ 1 trilhão, o equivalente ao Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina, é desperdiçado no Brasil. Quase nada está imune à perda. Uma lista sem fim de problemas tem levado esses recursos e muito mais. De cada R$ 100 produzidos, quase R$ 25 somem em meio à ineficiência do Estado e do setor privado, a falhas de logística e de infraestrutura, ao excesso de burocracia, ao descaso, à corrupção e à falta de planejamento.

 

O DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS

food-wasteAlém de dinheiro, que poderia ser investido em educação, saúde e transporte público, escorrem pelo ralo muitas outras oportunidades. O Brasil deixou passar a bonança externa — entre 2003 e 2008, o mundo viveu a sua era de ouro, puxado pelo super crescimento chinês — sem fazer as reformas estruturais necessárias à economia. Agora, se vê sem capacidade de colher os frutos do bônus demográfico, período único em que as nações usam a sua força de trabalho para se tornarem ricas. De farto e próspero, o país ganha cada vez mais a cara do desperdício. O Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam alimentos. Um relatório da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) aponta que até 70 mil toneladas de alimentos plantados por ano no país são jogadas no lixo.

A FAO estima que, a cada ano, aproximadamente um terço de todo alimento produzido para consumo humano no planeta é perdido ou desperdiçado.O volume global de desperdício de alimentos é estimado em 1,6 bilhão de toneladas de “equivalentes a produtos primários”. Isso pode ser medido contra a produção agrícola total, que é de cerca de 6 bilhões de toneladas.

A cada ano, os alimentos produzidos mas não consumidos utilizam um volume de água equivalente ao fluxo anual do rio Volga na Rússia e são responsáveis pela emissão de 3.3 mil milhões de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera do planeta. Além desses impactos ambientais, as consequências econômicas diretas do desperdício de alimentos (sem incluir peixes e frutos do mar) atingem o montante de 750 mil milhões dólares por ano, de acordo com as estimativas do estudo da FAO.

De acordo com essa análise 95% da perda dos alimentos nos países em desenvolvimento ocorre nos estágios iniciais da produção, principalmente pelas limitações financeiras e técnicas. Dificuldades de armazenamento, infraestrutura e transporte também são fatores que promovem esse desperdício.

Já nos países desenvolvidos, o descarte é mais significativo no fim da produção. Em mercados e pontos de venda, grandes quantidades de comida são jogadas no lixo por sua aparência e expiração das datas adequadas de consumo. No mundo dos consumidores, a má utilização está relacionada à aquisição em quantidades superiores às necessárias, e no preparo de grandes porções.

 

NA ESTRADA

postharvest20grain20loss20and20small-scale20farmersA colheita da segunda safra de milho já terminou em Jataí, no sudoeste de Goiás. Esse ano, a área plantada com a cultura no município foi de 200 mil hectares. Os agricultores ainda contabilizam o resultado da produção, mas a estimativa é que tenham sido colhidas 1,32 milhão de toneladas do grão. Só que nem toda produção do campo irá chegar aos armazéns por causa do desperdício.

O desperdício de grãos começa nas próprias fazendas. Em uma área de uma propriedade da região onde havia uma lavoura de milho que acabou de ser colhida ainda é possível encontrar grande quantidade de espigas que as máquinas deixaram para trás.

As perdas são maiores durante o transporte da safra. No período da colheita, é fácil encontrar milho espalhado por todos os lados. As rodovias ficam cheias de grãos que caem dos caminhões. Dependendo da distância, a perda é grande. “Tem caminhoneiro que chega a perder até 700 quilos em um trecho de 450 quilômetros”, diz o caminhoneiro Agnaldo Firmino Lopes.

Muitos trabalhadores rurais aproveitam o fim da colheita para ganhar um dinheiro extra com o que sobrou nas lavouras. Dieno Souza chega a recolher 30 sacas de milho por dia. “Dá R$ 2,5 mi por mês”, calcula.

Toneladas de soja, milho e outros grãos ficam espalhados nos acostamentos das rodovias que cortam as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, as principais produtoras e exportadoras da produção nacional. Não há dados oficiais para mensurar o quanto se perde a cada safra, porém, estimativas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento apontam para alguma coisa entre 10% e 15% durante toda a cadeia produtiva – entre a colheita e o momento da exportação, incluindo o processo de armazenagem e o transporte.

Além destes impactos ambientais, as consequências econômicas diretas do desperdício de alimentos (sem incluir peixes e frutos do mar) atingem o montante de 750 mil milhões dólares por ano, de acordo com as estimativas do estudo da FAO. Apesar de não ser medido com precisão, as estimativas do desperdício assustam. Economistas e acadêmicos falam que alguns setores perdem até 40% do que produzem – é o caso dos hortifrutícolas. Significa que, de cada 100 pés de alface plantados e colhidos, 40 vão para o lixo.

O desperdício de comida provoca mais do que prejuízos financeiros, gera revolta e inconformismo. Ainda assim, o Brasil pouco se mobiliza no sentido de mudar esse quadro. Desde 1998, a chamada Lei do Bom Samaritano, em alusão a uma passagem bíblica, tramita no Congresso Nacional, e não há previsão alguma para que seja votada. A intenção da proposta é isentar doadores de alimentos de responsabilidade civil e penal, se agirem de boa fé, na distribuição de comida — semelhante ao que ocorre em países da Europa e nos Estados Unidos.

Enquanto essa lei não é aprovada, o Estado brasileiro pune severamente os doadores. A legislação atual prevê até cinco anos de prisão caso quem receba os alimentos sofra algum tipo de dano em decorrência da comida. Com isso, donos de restaurantes, por exemplo, se sentem obrigados a despejar no lixo as sobras diárias da produção.

 OUTRAS FORMAS DE DESPERDÍCIO

Não é apenas de alimentos o desperdício no Brasil. Água e energia elétrica somam perdas tão grandes que colocam em risco o abastecimento no futuro. Assim, 20% de toda energia elétrica produzida no Brasil são desperdiçados, o que significa uma perda anual de US$ 270 milhões.

De 25% a 40% de água também são perdidos em vazamentos, equipamentos velhos e mau uso por parte do consumidor.

As empresas de saneamento básico no Brasil desperdiçam cerca de 40% da água que distribuem, um nível quase quatro vezes superior ao de países como Alemanha e Japão. É o que aponta o levantamento Manual sobre Contratos de Performance e Eficiência para Empresas de Saneamento em Brasil, realizado pela GO Associados a pedido da International Finance Corporation (IFC), instituição de desenvolvimento do Banco Mundial voltada ao setor privado, em parceria com o governo da Espanha.

Esse nível de desperdício tem se mantido praticamente estável nos últimos dez anos, com algumas operadoras de saneamento atingido índices superiores a 80%. O estudo estima que o Brasil precisa reduzir o desperdício em ao menos dez pontos percentuais para chegar aos níveis de perdas semelhantes aos países desenvolvidos.

O desperdício da população, somado ao aumento do consumo de água e energia nos últimos anos (55% desde 2011), além da estiagem e da falta de chuvas regulares no verão, assusta alguns especialistas.

Conforme dados da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 40% do potencial hídrico no País é desperdiçado. Diferentes autoridades argumentam que se a conta de água fosse mais cara, o consumo seria mais racional. O preço da tarifa de água no Brasil é considerado baixo para os padrões internacionais. A Global Water Intelligence mostra que enquanto a tarifa média aqui está em torno de 1,50 dólar por metro cúbico, na Dinamarca, por exemplo, o valor é cinco vezes maior.

 NA CONSTRUÇÃO

image5b265dA construção civil também tem números assustadores: De cada três prédios construídos no País, seria possível construir mais um, apenas com o material que é jogado fora.

Levantamento realizado pela UFMG e outras 15 universidades brasileiras em 12 estados confirma que os níveis de desperdício na construção civil continuam atingindo níveis preocupantes. Uma das causas do desperdício nas construções está no próprio layout dos canteiros. A forma com que os materiais são dispostos obriga o pedreiro a fazer grandes deslocamentos, provocando perda substancial de tempo. Falhas nas construções também são comuns, confirmando um dos mais graves problemas da construção brasileira: a mão-de-obra desqualificada. Materiais como a argamassa chegam a apresentar 90% de perda.

O engenheiro brasileiro planeja pouco. Isto, segundo constatou a pesquisa, pode ser a principal causa do desperdício. Problemas que poderiam ser detectados na elaboração do projeto são percebidos somente no momento da execução da obra. Como os projetos são pouco detalhados, o trabalho acaba marcado pela improvisação.

 NA ESCOLA

O Brasil perde a quantia de R$ 14 bilhões por ano com meninos e meninas que, devido à péssima qualidade do ensino, não aprendem e precisam repetir o ano letivo.

Ou pior: desistem dos estudos e deixam, definitivamente, as salas de aulas. A repetência e a evasão escolar nos ensinos fundamental e médio custam, respectivamente, R$ 9,2 bilhões e R$ 4,8 bilhões. O dinheiro faz falta aos parcos investimentos brasileiros em educação, que anualmente giram em torno de 4,1% do Produto Interno Bruto (PIB).

O dinheiro perdido equivale a 560 prêmios acumulados da Mega-Sena, que pagou no sábado R$ 25 milhões. A mesma verba daria para comprar, durante 30 anos, 102,5 milhões de livros de alfabetização e das disciplinas de português, matemática, ciências, história e geografia, beneficiando 28,6 milhões de estudantes de 1ª a 8ª séries que, segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), custam R$ 456,7 milhões aos governos.

NO TRÂNSITO

O brasileiro tem demorado cada vez mais para chegar ao trabalho. O desperdício de tempo no trânsito, sobretudo nas metrópoles, pode superar uma hora a depender do trecho percorrido. Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceira com a Universidade de Oxford, mostra que a mobilidade urbana pune principalmente os habitantes das cidades mais populosas, onde a renda per capita é maior e a proporção de pessoas com carro também. Nos últimos 20 anos, o tempo gasto no trajeto aumentou 4,5% no Brasil. Esse percentual cresceu ainda mais em Brasília e em Belo Horizonte, onde as taxas foram de 6,2% e 6,5%, respectivamente.

A pesquisa mostra que, em áreas metropolitanas, o deslocamento do brasileiro até o trabalho saltou de 36 minutos, em 1992, para 38 minutos. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, passou de 38 minutos para 43, em média. No Distrito Federal, o tempo saiu de 33 minutos para 35 em cada deslocamento, enquanto em Belo Horizonte variou de 32 para 34 minutos.

Transformando tempo em dinheiro, a estimativa é que, ao passar 38 minutos no trânsito, o brasileiro deixe de receber R$ 6,65, o equivalente a pouco mais de meia hora de trabalho. O cálculo considera rendimento médio real, de R$ 1.848,40, divulgado pela Pesquisa Mensal de Emprego de julho, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse valor é dividido pelas 176 horas trabalhadas no mês (44 semanais, segundo a CLT), que resulta na hora de trabalho em R$ 10,50.

NA SAÚDE

Outrotipo de desperdício de recursos públicos também não podeser desconsiderado: a ineficiência da gestão pública (tambémchamada de má gestão ou de desperdício passivo),com obras que perduram por meses a mais do que oplanejado, remédios comprados e não distribuídos antes dovencimento, ausência de efetiva utilização dos equipamentosrecebidos etc. (Controladoria Geral da União, 2011).

Este tipo de desperdício não recebe tanta atenção na mídia ou mesmo em trabalhos acadêmicos comoocorre com a corrupção. Contudo, um estudo recente, realizadopor Bandiera, Prat, e Valletti (2009), evidenciou que,na Itália, estes gastos representaram 83% do total de desperdíciode dinheiro público na aquisição de bens.

Tais desvios de recursos em áreas como educação, saúdee saneamento, conforme Ferraz, Finan, e Moreira (2008, p 2), “[…] geram altos custos para a sociedade já que reduzema acumulação de capital humano e acentuam a desigualdadeporque domicílios mais pobres dependem de maneiramais acentuada dos serviços públicos”.

Dentre os serviços públicos prestados à população, équase consenso que o serviço de saúde é um dos mais importantes,conforme indica um estudo realizado pelo Institutode Estudos de Saúde Suplementar (IESS) em oito regiões metropolitanas do país, o qual concluiu que, depois dacasa própria, o segundo objetivo do brasileiro é dar planode saúde à família (Rosa, 2011).

A importância da saúde pública é reconhecida pelo Estado,visto ser este o tema de uma das treze Diretrizes do Governoda atual Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, contempladana meta nove “Universalizar a Saúde e garantir a qualidadedo atendimento do SUS”, que tem como prioridade, de acordocom o Portal Brasil (2011), aperfeiçoar o “Sistema Único deSaúde (SUS) e seus mecanismos de gestão, fiscalização e controlede qualidade aos serviços prestados (…)”

 ESCASSEZ OU EXCESSO?

A maioria das pessoas, assim como o faz a teoria econômica tradicional, insiste em caracterizar o capitalismo como um sistema de escassez. Famosa tornou-se a definição de ciência econômica como a ciência social que estuda a “produção e distribuição de recursos escassos para fins determinados”. A realidade do capitalismo, entretanto, nos fornece fortes evidências de que ambas, produção e distribuição referem-se a bens e serviços em excesso. Longe de um mundo de escassez, o atual sistema econômico acumula estatísticas sobre o desperdício sistemático de recursos.

O mundo de hoje é um mundo no qual há mais obesos do que famintos. Um mundo no qual em um único país, os EUA, um quarto da população já é de obesos. Um mundo no qual 40% do que se produz não se consome. Produção não consumida representa recursos, matérias-primas, insumos e transporte produzidos mas não consumidos. Reina o excesso e o desperdício, ainda que muitos sigam pensando em termos de escassez. Afinal de contas, por que haveria uma crise ambiental mundial senão em razão do excesso, excesso de produção e de consumo?

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